Como a geofísica pode contribuir no gerenciamento hídrico de aquíferos como o Guarani

Figura 1 (capa): Os medidores do nível de água dos reservatórios eram constantemente acompanhados pela mídia durante a crise hídrica da cidade de São Paulo.

Não é novidade que a escassez hídrica vem se tornando um objeto de discussão frequente nos últimos anos. A água se constitui como um dos recursos mais essenciais para a sobrevivência humana, mas os recursos hídricos próprios para o consumo humano são limitados e estão se esgotando. A principal razão que justifica essa redução se deve ao mau gerenciamento da água nas cidades e em meios rurais.

Um caso capaz de ilustrar esse cenário ocorreu em São Paulo, entre os anos de 2014 e 2016; a previsão de que a Região Metropolitana de São Paulo poderia passar por uma crise hídrica nasceu ainda em 2004, quando a Sabesp reavaliou que todos os reservatórios do Sistema Cantareira pareciam insuficientes para abastecer a crescente demanda de água pela população. Muitas alternativas foram sendo consideradas, e a construção de mais poços artesianos para a captura de água no aquífero Guarani foram até cogitadas no estado durante a crise. Mas será que esse tipo de solução possui alguma projeção de longo prazo?

2Figura 2: O aquífero Guarani é um reservatório de água imenso encontrado na América Latina e faz parte dos países em que a sua extensão máxima se expande. A maior porção se concentra em território brasileiro.

 

O Aquífero Guarani é a solução a longo prazo?

Tudo depende de quão sustentável é o sistema de extração e reposição de água do aquífero. Em nosso artigo direcionado ao aquífero Guarani, destacamos o seu expressivo potencial hídrico. Porém, apesar de ser abundante, sabemos que sua quantidade de água  ainda é limitada e precisa ser gerenciada de forma consciente. Apesar de existir um regime de chuvas que alimentam aquíferos como o Guarani, como saber se essa reposição está compensando a retirada da água para consumo humano? Como isso poderia ser feito?

Um aquífero não é como um reservatório: calcular seu volume de água em um não é tão simples quanto calcular o volume da região ocupada pela extensão do aquífero, pois a sua água está dispersa em uma série de porosidades rochosas irregulares e parcialmente conectadas entre si. 

Ainda assim, existem algumas estratégias para monitorar o fluxo da água! Uma alternativa é estudar a variação de massa na região de forma indireta usando a gravimetria em função do tempo, e um trabalho publicado em janeiro de 2009 na Revista Brasileira de Geofísica explora um pouco o uso de uma tecnologia capaz de realizar um estudo gravimétrico na região ocupada por esse corpo hídrico.

 

Aplicações da gravimetria

  O trabalho, realizado pelos pesquisadores Everton Bomfim e Eder Molina do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, utilizou a tecnologia dos satélites GRACE para realizar um mapeamento gravimétrico do aquífero Guarani. Dessa forma, os dados compilados na pesquisa foram coletados quando os satélites estavam orbitando a uma distância menor da região gravimétrica de interesse. Como já comentamos em nosso artigo dos satélites GRACE, as variações geradas nas posições dos satélites estão associadas com a variação da aceleração da gravidade local.

A figura a seguir apresenta variações no campo gravitacional no entorno do Aquífero entre abril de 2002 e setembro de 2003:

3Figura 3: Os satélites capturaram variações na gravidade na região do aquífero Guarani em diferentes períodos. Atente-se às sutis diferenças entre os dois momentos. Fonte: Everton Pereira Bomfim e Eder Cassola Molina.

A escala utilizada para análise da imagem está associada com a concentração de massa nas regiões indicadas no mapa (ou seja, quanto mais tender ao vermelho, maior é a concentração de massa local). As variações são particularmente sutis, mas podem ser melhor comparadas na aproximação sobre a região de interesse na imagem a seguir:

4Figura 4: Aproximação da figura 3 apenas na região em que é possível notar as maiores diferenças na concentração de massa do aquífero. Fonte: modificado de Everton Pereira Bomfim e Eder Cassola Molina.

Nas duas regiões circuladas acima, de cada quadro, é possível notar que a tonalidade do azul escurece ligeiramente do quadro a para o b, mostrando que a concentração de massas diminuiu. Agora, compare o lugar no qual essas variações ocorreram em relação à localização do Aquífero Guarani (Figura 2). Percebemos que as variações ocorrem em um lugar compreendido pelos limites do aquífero. 

 

O que essas variações representam?

5Figura 5: As variações estão associadas com o regime de chuvas sazonal. 

Os dados demonstram que houve um aumento da massa na região para que existam implicações nos efeitos da aceleração da gravidade. 

Pode-se admitir a hipótese, muito condizente com as informações adquiridas, de que a massa é uma quantidade adicional de água alocada no aquífero para o período informado. Dessa forma, essa diferenciação se deve às diferentes estações do ano, pois o Guarani depende do regime de chuvas, que acontecem com maior intensidade durante o verão. Assim, o período de seca mais intenso no clima tropical é entre os meses de abril e setembro, impactando diretamente em uma menor reposição da água no aquífero nesse intervalo. 

Como esse trabalho essencialmente lida com variações gravimétricas, então ainda não seria possível determinar uma quantidade absoluta de água no aquífero apenas com essas informações – afinal, como dissociar a influência gravitacional causada pela água que permanece no aquífero das estruturas sólidas de seu entorno? Ainda assim, o trabalho quantifica algumas propriedades associadas à variação da massa de água do Aquífero Guarani.

 

Criando um modelo para o aquífero

Partindo dos registros de aceleração da gravidade dos satélites GRACE, foi possível realizar um modelo que corrigisse algumas das variações da massa que não tenham relação com o aquífero (tais como efeitos atmosféricos ou da composição geológica local).  Este novo modelo possuiu, como objetivo, caracterizar diferenças da densidade em função do tempo nas camadas abaixo da superfície. A seguir, os cortes de camadas foram feitos nas proximidades indicadas pela Figura 4 (que compreende, principalmente, parte do Estado de São Paulo e parte do Paraná). 

6Figura 6: Seções transversais de um gráfico 3D que indica a variação de densidade em cada ponto pela escala indicada. Fonte: Everton Pereira Bomfim e Eder Cassola Molina.

Cada figura é um corte horizontal de camadas que são indicadas por uma certa profundidade (que, nesse caso, é dada por z). Para o modelo, era esperado que a região mais superficial (até 250 metros, Fig. 6a) tivesse uma densidade aproximadamente constante, pois a água do aquífero é armazenada nas regiões mais profundas. Na profundidade de 500 metros (Fig. 6b), o modelo indica um fluxo mais intenso da água do aquífero, mostrando regiões avermelhadas (que possuem aumento significativo de densidade) pela saturação de água. Outras regiões, entretanto, sofrem um esvaziamento de água nos poros e aparecem em tons mais azulados nas seções. 

 

O que esse trabalho simboliza?

Hoje em dia, o GRACE sequer está em atividade. Agora, ele foi substituído pelo GRACE-FO, que possui uma tecnologia e precisão melhores que o anterior. Essas melhorias facilitam ainda mais a percepção das diferenças sutis no campo gravitacional local.

Como o monitoramento foi feito entre 2002 e 2004 (por 376 dias), se tornou possível estudar apenas o comportamento hidrogeológico do Aquífero Guarani a uma escala sazonal, identificando pequenas nuances entre as estações. No entanto, imagine a possibilidade de realizar um monitoramento ao longo de décadas, permitindo a criação de uma ampla base de dados para comparação; veríamos se a saturação de água no subsolo aumenta ou diminui anualmente. 

Fica evidente que essas tecnologias podem se converter em uma ferramenta poderosa a favor da proteção dos recursos hídricos de aquíferos no mundo todo. O Aquífero Guarani é apenas um exemplo do que pode ser feito com qualquer outro de regime similar a ele no mundo. Dessa forma, sociedades de diferentes origens podem conseguir maior domínio da massa de água remanescente desses corpos hídricos naturais, e esse conhecimento é passo primordial para se diagnosticar possíveis usos insustentáveis de um dos mais preciosos recursos para a vida do nosso planeta.

Colaboração: Prof. Eder Molina (IAG-USP)

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